A doutrina do "cy près"
- concursosmpraiz
- 22 de mar. de 2021
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Originária do sistema do “common law”, a doutrina do “cy-près” (expressão francesa “cy près comme possible”, traduzida por “o mais próximo possível”), historicamente se aplicava a casos envolvendo “trusts”, nos quais a intenção original de um doador/testador não poderia ser concretizada por impossibilidade fática ou jurídica, então o juiz buscava destinar o capital afetado a uma finalidade mais próxima do possível.
No entanto, com a evolução jurisprudencial, passou-se a aplicar essa doutrina também no âmbito das “class actions” em hipóteses nas quais a indenização obtida num acordo fosse impossível de ser revertido aos indivíduos lesados, admitir-se-ia que tais valores fossem revertidos a uma finalidade “o mais próximo possível” do fato gerador do prejuízo, proporcionando um benefício indireto aos sujeitos afetados pelo evento.
No Brasil, considerando que não há na legislação de regência previsão específica sobre a destinação dos valores obtidos em termos de ajustamento de conduta, há estudiosos preconizando que seja aplicada a doutrina do cy-près.
Tradicionalmente, aplicam-se ao compromisso de ajustamento de conduta as previsões da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor acerca do destino dos valores decorrentes de condenações judiciais em processos coletivos, especificamente no artigo 13 da LACP e artigo 100 do CDC (fluid recovery).
Todavia, insurgiram grandes críticas acerca do modelo brasileiro dos fundos, uma vez que os valores obtidos em uma sentença proferida em ação coletiva, ou mesmo em um acordo celebrado em um conflito coletivo, não são destinados a finalidades que guardem correspondência com o específico direito lesado, sendo o caso, por exemplo, de verbas provenientes de indenização por dano ao consumidor destinadas a projetos relativos ao meio ambiente.
Dessa forma, haveria uma inobservância ao princípio da reparação integral, especialmente em sua faceta compensatória, na medida em que se perde a relação de equivalência entre a destinação da indenização e os danos sofridos pelos lesados.
Iniciou-se, então, no âmbito do Ministério Público do Trabalho, a se reverter indenizações e multas decorrentes de compromissos de ajustamento de conduta para projetos/instituições de interesse público e social. Essa prática vanguardista é o embrião da doutrina do “cy-près” em nosso país, tendo sido posteriormente positivada na Resolução nº 179/17 do Conselho Nacional do Ministério Público.
O artigo 5º da referida Resolução determina em seu “caput” que a destinação primária dessas verbas deve ser a reconstituição específica do bem lesado, consagrando a primazia da tutela específica.
Porém, nas hipóteses em que não se mostra possível a destinação das verbas pecuniárias à “reconstituição específica do bem lesado”, o parágrafo primeiro permite a destinação dos valores a projetos de prevenção ou reparação de danos a bens jurídicos da mesma natureza daquele cuja lesão motivou a celebração do TAC, ao apoio de entidades cuja finalidade institucional inclua a proteção a direitos coletivos, ou ainda o depósito em contas judiciais que poderão receber destinação similar àquela dos fundos mencionados na Lei da Ação Civil Público. Quanto ao parágrafo segundo, as verbas provenientes do ajustes devem ser, preferencialmente, revertidas em proveito das pessoas e da região impactadas pelo dano que ensejou a atuação do Ministério Público.
Trata-se, portanto, de norma de relevante importância, uma vez que, mesmo com a impossibilidade/inadequação da destinação direta dos valores pecuniários decorrentes do ajuste à específica recomposição do bem lesado, resguarda-se a função compensatória da responsabilidade civil ao passo que não se perde a relação de equivalência entre o destino da indenização e o local em que ocorreu o dano e os sujeitos por ele afetados.
Não obstante, novamente estudiosos levantaram a possibilidade de abertura de que essas instituições beneficiadas fossem escolhidas apenas com base na discricionariedade subjetiva do agente ministerial que oficia no feito.
Buscando solucionar essa questão, o representante do Ministério Público, ao celebrar um termo de ajustamento de conduta, deve fundamentar exaustivamente a destinação de valores pecuniários decorrentes de multas e indenizações, garantido-se o cumprimento do dever de “accountability” conferido àqueles que tomam decisões em questões de interesse público em um Estado Democrático de Direito.
Além disso, deve o membro do “Parquet” atentar-se à prestação de contas das verbas destinadas, especialmente considerando que quando os valores decorrentes de um compromisso de ajustamento de conduta são revertidos a fundo legalmente previsto, está assegurada a prestação de contas ao Tribunal de Contas; no entanto, quanto às entidades privadas, essa forma de prestação de contas não está predeterminada.
Sendo assim, com base no argumento de que o Promotor de Justiça da Comarca conhece a comunidade e é o ator com maiores condições de saber qual é a melhor destinação a ser dada a indenização proveniente de um TAC, e tendo aquele decidido destinar o valor à entidade privada, a prestação de contas da aplicação dos recursos poderá ser feita ao próprio agente ministerial responsável, que fará o acompanhamento no próprio procedimento extrajudicial.
Em conclusão, a aplicação da doutrina do “cy-près” ao termo de ajustamento de conduta mostra-se viável, até mesmo necessária, a fim de ser atendido ao comando principiológico da reparação integral, em seu viés compensatório, com base no artigo 5º da Resolução nº 179/17 do Conselho Superior do Ministério Público, preenchidos os requisitos da fundamentação da destinação, bem como do acompanhamento e fiscalização da prestação de contas pelo agente ministerial.
Fontes:
Execuções judiciais pecuniárias de processos coletivos no Brasil: entre a fluid recovery, a cy pres e os fundos. HOMMA, Fernanda Lissa Fujiwara. Curitiba/2017.
Fundamentos e diretrizes para a destinação alternativa de verbas pecuniárias (cy-près) em termos de ajustamento de conduta celebrados pelo Ministério Público. NETO, Rogério Rudiniki.
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